05/06/2006 – Formação e invenção do professor no século 21

Cristóvam Buarque

A escola começou com apenas alguns alunos ao redor de um professor. Sem quadro-negro, sem livros: um professor e um pequeno grupo de alunos. Ao longo de séculos, essa estrutura evoluiu, sem jamais deixar de estar centrada no professor.
No século  21, o professor continuará sendo o centro do processo pedagógico, mas  de uma forma diferente. Longe daquele tutor rodeado de cinco ou seis alunos, o professor será o maestro, o arquiteto e o engenheiro de um espetáculo composto por alunos em número variado de até milhões. Alunos espalhados pelo mundo inteiro, em endereços geográficos desconhecidos e que podem também desconhecer onde está o professor, que usará os modernos equipamentos de teleinformática para melhora interagir com eles.
Essa mutação demorou, mas em nenhum momento ocorreu com tanta rapidez e força quanto nos últimos anos. Passaram-se mais de  2000 anos, desde o início da escola, para que fosse inventado o quadro-negro. Esta foi a primeira grande invenção revolucionária do processo educacional, ao lado da imprensa e da biblioteca. Graças a ela, foi possível ampliar o número de alunos para algumas dezenas. Depois, o microfone ampliou para até centenas.
Foram, porém, o rádio e a televisão que permitiram ampliar a assistência; a informática permitiu a aula interativa para milhões de alunos. Além disso, foram as modernas técnicas de programação visual que transformaram o quadro-negro em um monitor em que as imagens se movem, adquirem três dimensões, penetram nos objetos estudados, jogam com o imaginário de cada aluno.
Essa revolução no equipamento pedagógico ocorrida nos últimos 20 anos está inventando um novo profissional, que ainda vai continuar se chamando professor, mas já não se encaixa no tipo anterior. Mesmo assim, ele continuará sendo o centro do processo pedagógico.
Por isso, o mais importante desafio da educação contemporânea é formar o professor. Mais até: inventar um novo tipo de professor.
Pelo lado dos equipamentos já disponíveis, o professor terá de se reformar, se reinventar. Para ser um bom professor, ele precisará ser capaz de oferecer o máximo de recursos a seus alunos. Da mesma maneira que não se imaginava, no século 20, um professor sem quadro-negro, no século 21 não se pode conceber um professor que não disponha nem se beneficie dos recursos modernos que facilitam o aprendizado, como televisão, computador, vídeo, programação visual, informática. O professor dos próximos anos terá de se adaptar à evolução que está ocorrendo nos equipamentos pedagógicos.
Além disso, ele precisa se adaptar à nova dinâmica com a qual o conhecimento avança, em uma velocidade nunca ocorrida no passado. O conteúdo que ele conhece e transmite exigirá uma nova formação, porque o conhecimento hoje evolui de maneira muito mais rápida do que há até pouco tempo. O professor era a pessoa que conhecia determinado assunto e possuía uma habilidade inata ou adquirida para usar sua fala, seu quadro-negro, sua memória, talvez um pouco de seu carisma, para transmitir seu conhecimento aos alunos. Até recentemente, ao longo de sua vida profissional, evoluíam muito pouco o quadro-negro e o conteúdo do seu conhecimento.
Dois movimentos do mundo atual forçam o professor a uma adaptação, uma transformação, uma reinvenção: por um lado, os novos equipamentos; por outro, uma dinâmica de evolução no conteúdo. Faz pouco tempo, o saber de um professor tinha valor atualizado até sua aposentadoria. O conhecimento durava e os equipamentos eram os mesmos. Hoje, esse conhecimento fica obsoleto muito rapidamente, e a teleinformática oferece novos produtos a cada dia. Ao longo de sua vida profissional o professor tem de passar por diversas rupturas no conhecimento dos equipamentos. Antes, o conhecimento e os equipamentos eram estoques adquiridos, agora são fluxos a serem dominados constantemente, por meio de uma formação pedagógica permanente.
Além da dinâmica no conhecimento e da modernidade dos equipamentos, três outras realidades obrigam o professor a se reformar: a mente dos alunos, iniciados e viciados nos monitores da televisão e dos computadores, a ausência das famílias e a presença da mídia.
O aluno contemporâneo não é mais uma tábua rasa a ser escrita pelo professor. Desde a mais tenra idade, ele aprende a cada dia, por meio das informações que recebe constantemente, e quando vai à escola tem dados adicionais, além dos que recebeu na véspera em sala de aula. O magistério ocorre dentro da escola, com professor, e fora dela, com a mídia. E esses dois setores nem sempre, ou raramente, colaboram um com o outro. Na maior parte dos casos, eles se opõem, se negam, a mídia disseminando ou dizimando o que o professor ensina.
Essa dificuldade não seria tão grave se o mundo moderno mantivesse a tradição da família, especialmente a mãe, os avós e tios, os irmãos mais velhos e até os vizinhos participando da grande aventura do ensino. Mas a cada dia diminui essa integração. As mães trabalham fora, os irmãos estão isolados nas ruas, nos videogames, às vezes no crime, os vizinhos são desconhecidos e muitas vezes desconfiados. (E o pai?)
A formação do professor enfrenta, portanto, cinco desafios:

  • os novos equipamentos,

  • a dinâmica do conhecimento,

  • a presença da mídia,

  • a ausência da família,

  • o conhecimento precoce e a priori dos alunos.

Por isso, nunca foi tão fundamental a formação do professor.
Primeiro, mais do que formado, ele tem de ser reformado, reinventado, para servir ao processo de aprendizagem do futuro. Os professores terão de mudar muito mais do que mudaram no tempo em que o uso do quadro-negro começou a se generalizar. Diz-se que foi um escocês, James Pillans (1778-1864), quem inventou o quadro-negro e o giz colorido, para ensinar geografia. Não se pode imaginar o aprendizado da geografia sem os desenhos nos quadros. O mesmo acontecerá no futuro: não se poderá imaginar o aprendizado de idiomas, física, biologia ou qualquer outra disciplina sem os recursos que a teleinformática oferece.
Para se reformar e se adaptar ao uso dos sistemas de computação, o professor vai deixar de ser um artesão da transmissão do saber, baseado apenas na própria capacidade, e terá de trabalhar em grupo, com programadores visuais, analistas de sistema, profissionais de informática e outras especialidades que surgirão nos próximos anos e décadas. 
Não será impossível que, para diferenciar o professor do século 21 de todos os anteriores, surja até mesmo um novo nome para identificá-lo.
Segundo, o professor terá de ser capaz de reaprender permanentemente, não apenas as técnicas de programação visual e de informática, mas também o conteúdo de suas matérias. Porque o pensamento evolui muito rapidamente e se espalha mais rapidamente ainda. O professor do futuro estudará sua matéria, aprendendo-a permanentemente, simultaneamente ligado com a criação do saber, ou não mais saberá sua disciplina, ficará obsoleto. De outra, se ele demorar a aprender, seus alunos aprenderão antes dele, seja pela televisão ou pela navegação na internet.
O professor estará sempre em formação, ou não será professor.
Terceiro, ele terá de saber utilizar a mídia aberta, não apenas para contrabalançar os prejuízos que ela provoca no aprendizado, como também para tirar proveito dos programas educacionais que ela tem. A programação da televisão aberta e a cabo terá de ser levada em conta como parte da escola e para isso o professor deverá estar preparado.
Essa reformulação do professor, mais do que sua formação, exigirá uma modificação na escola e em seus administradores.
O salário do professor terá de aumentar consideravelmente, ou a escola não será capaz de manter esse novo profissional. Para ter um bom professor, vai ser preciso atrair profissionais que não apenas conhecerão suas disciplinas, mas também saberão manusear com facilidade todas as técnicas de programação visual e conhecerão o idioma de outros profissionais da área da informática, o que vai exigir salários crescentes.
O professor terá de ser cobrado não apenas por sua formação e pelo aprendizado permanente, continuado, on line, de sua área, mas também por sua dedicação ao magistério. O salário não poderá ser aumentado apenas com base nos diplomas que adquira, porque os diplomas terão prazo de validade, mas também nos resultados obtidos, na avaliação do aprendizado de seus alunos.
Além dos salários elevados, os professores só poderão exercer suas funções se cada escola dispuser de equipamentos modernos. Da mesma forma que desde o século 19 não se pode imaginar uma escola sem quadro-negro, não se pode, no século 21, imaginar uma escola sem um sofisticado conjunto de equipamentos de teleinformática à disposição do professor.
Para que isso seja possível, os órgãos de administração da educação precisam necessariamente manter um sistema permanente de formação para os professores, para atualizar tanto o conteúdo de suas disciplinas quanto as novas técnicas pedagógicas. A formação deve ser permanente, continuada, diária; é preciso criar sistemas de sabáticas para que os professores disponham de tempo integral, por algumas semanas ou meses, a cada ano, para sua dupla atualização: na disciplina que ensina e nas técnicas de ensino.
No caso específico do Brasil, isso vai exigir mudanças substanciais na administração da escola pública.
Primeiro, será necessário criar um Ministério da Educação Básica. Enquanto o MEC cuidar simultaneamente do Ensino Básico e do Ensino Superior, essa última área dominará totalmente o uso de recursos e as preocupações dos dirigentes nacionais. Em tais condições, o governo federal continuará cuidando do Ensino Superior e relegando o Ensino Básico aos municípios e estados. O resultado será uma educação pobre e desigual. Pobre porque os estados e municípios têm poucos recursos. E desigual porque no Brasil a diferença de renda entre os municípios chega a ser de quase 40 vezes. Além do Ministério da Educação Básica, será preciso criar junto à Presidência da República uma Agência Nacional de Proteção da Criança, que coordene as ações de todos os ministérios e monitore, apóie e invista no desenvolvimento das crianças, desde seu nascimento até o final do Ensino Médio.
A formação do professor brasileiro será uma tarefa nacional, ou não ocorrerá. É preciso nacionalizar a formação do professor, suas regras, seus instrumentos e, obviamente, suas compensações. Será preciso um salário federal, cursos e concursos federais e monitoramento e avaliação federais. Não é possível que a educação de uma criança brasileira seja feita por um professor selecionado por critérios municipais e estaduais e remunerado pelo município ou estado. É preciso que haja um padrão mínimo, tanto para a formação quando para o salário e a avaliação do trabalho do professor.
Segundo, da mesma forma, será preciso que haja um padrão mínimo de edificações e de equipamentos para cada uma das 180 mil escolas do Brasil. O Brasil não pode ter uma boa educação, e professores bem formados se entre 20 mil e 30 mil dessas escolas não contam sequer com banheiro ou energia elétrica. Tampouco se essas escolas não têm acesso a computador, televisão, programas de informática, CD/DVD, TV educativa, antena parabólica, internet. Esse padrão mínimo de edificação e equipamento tem de ser financiado e fiscalizado pela União. Nenhum estado, nem mesmo entre os ricos, dispõe de recursos suficientes e a desigualdade entre eles sacrificaria mortalmente a educação das crianças das regiões mais pobres.
Terceiro, além dos padrões mínimos de salários e formação e dedicação, e de edificações e equipamentos, é preciso que os quase 2 milhões de professores do Brasil sejam formados para transmitir conteúdos que sigam padrões mínimos em todas as classes de todas as escolas do Brasil, seja qual for a cidade onde o aluno tenha nascido ou estude, seja qual for a classe social da sua família. De nada adiantará formar professores se eles não forem bem remunerados, mas de nada adiantará formar e remunerar bem se eles não contarem com os equipamentos necessários. E também de nada servirá se os alunos continuarem a chegar à 4ª série sem saber ler e escrever; sem saber matemática; sem que haja um padrão mínimo de conteúdo para cada classe em cada escola, em todas as cidades dos Brasil.
Quarto, a cada ano o governo federal deverá, por meio do Congresso Nacional, aprovar uma lei com as metas educacionais para aquele ano. E será preciso que as autoridades cumpram essas metas. Assim como o Brasil tem uma Lei de Responsabilidade Fiscal, é preciso haver uma Lei de Responsabilidade Educacional. Por meio delas se definirão as metas a serem atendidas pelos prefeitos, governadores e pelo ministro da Educação Básica. Com essas metas, será possível inclusive reduzir gastos, porque em vez de se exigir dos prefeitos que gastem muito, se exigirá que façam muito. Apesar do avanço que significou a vinculação de gastos para a educação, essa lei provocou um desvio de sua intenção quando foi outorgada, porque o bom prefeito passou a ser o que gasta muito com educação, independentemente dos resultados obtidos. O bom prefeito deve ser aquele que faz muito - o que deve ser medido pelo aprendizado de seus alunos -, mesmo gastando menos.
Quinto, nada disso poderá ser feito sem que o governo federal invista mais em Educação Básica. Hoje, dos 60 bilhões de reais gastos com Educação Básica no Brasil, o governo federal entra com apenas 6 bilhões de reais. O Fundeb pouco vai mudar, ao elevar ligeiramente esse valor. O governo federal precisa gastar, desde já, no mínimo 7 bilhões de reais a mais, por ano, com educação.  Esses 7 bilhões de reais correspondem a apenas 1% da receita da União. Um valor perfeitamente viável.
Sexto, esses recursos de pouco adiantarão se não vierem acompanhados de mudanças na criação de um Sistema Único de Educação, ou da Nacionalização da Educação Brasileira, e se elas não vierem acompanhadas de pelo menos sete instrumentos essenciais:

a)  criação de um Ministério da Educação Básica e de uma Agência Nacional de Proteção da Criança,

b) consolidação da Universidade Aberta do Brasil, com cursos dirigidos à formação permanente dos professores;

c)  assinatura de convênios com o repasse de reservas do Ministério da Educação Básica para o Ministério do Ensino Superior, para que as universidades promovam cursos de licenciatura e de formação continuada de professores;

d)  garantia de vagas automáticas nas universidades para professores concursados ou aprovados em cursos de licenciatura ou especialidade nas áreas pedagógicas;

e)   pagamento de bolsas integrais aos alunos de licenciatura e pedagogia que estudem em universidades e em faculdades privadas com qualidade comprovada;

f)   criação de uma rede de institutos superiores federais, estaduais e municipais de educação, para a formação de professores, independente da estrutura universitária tradicional;

g)  recriação do sistema de inspetoria federal de Educação Básica.

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