31/03/2016 - Curso de formação sindical - Quadro do Magistério - "Ações democráticas nas escolas" - Alexsandro Santos

Das intenções democráticas às práticas autoritárias

     Nos últimos anos, os educadores da infância têm se acostumado a repetir que as crianças, mesmo muito pequenas, são sujeitos de direitos. Trata-se de um avanço importante, na medida em que reposiciona, em nossos discursos, o lugar das meninas e dos meninos em sua relação com os adultos, conferindo a eles, ao menos neste campo do dizer, um estatuto de igualdade próprio da cidadania.

     Ocorre que, nos espaços de educação infantil nem sempre esta mudança discursiva tem significado um reordenamento das práticas e das relações entre os adultos e as crianças que são, efetivamente, vivenciadas. Embora as relações democráticas e o reconhecimento da participação cidadã das crianças nas creches e pré-escolas estejam no horizonte das possibilidades e apareçam, como "inéditos viáveis", nas preocupações de parte dos educadores, infelizmente, ainda são densas as marcas de uma lógica de funcionamento profundamente adultocêntrica, autoritária e vertical no currículo das instituições de educação infantil.

     A adesão às propostas e práticas de democratização das relações na educação infantil exige dos educadores a lenta (e, muitas vezes, difícil) desconstrução de concepções e representações inscritas profundamente nas identidades docentes e que se manifestam, por exemplo, nos gestos, nos olhares, no tom da voz, nas palavras escolhidas para dizer as coisas, na organização do espaço e do tempo e nas expectativas que nutrimos quanto às respostas das crianças. 

     Quando nos comprometemos, de fato, com esse processo de desconstrução dos modelos autoritários que alimentam a nossa profissão, colocamos a questão da participação das crianças na produção ativa do currículo como uma preocupação fundamental. E, vale ressaltar, como nos lembram Anne Graham e Robyn Fitzgerald (2010, p. 8), que "a 'participação' não é apenas um processo de escuta das crianças, ouvir as suas vozes ou ter em conta as suas opiniões, experiências, medos, desejos e incertezas: sustenta a possibilidade de as crianças descobrirem e negociarem a essência de quem elas são e o seu lugar no mundo".

     Uma série de pesquisas no campo da sociologia da infância e no campo da análise das práticas educativas na infância tem nos permitido identificar as contradições entre o nosso discurso democrático e a nossa prática autoritária com as crianças. As anotações de campo capturadas por Martins Filho & Delgado (2014), em uma instituição de educação infantil brasileira, nos ajudam a colocar em discussão essas contradições:

     1. No refeitório Milene (dois anos e nove meses) conversa com a professora argumentando: – Não estou com fome e não gosto de comer beterraba. A professora responde: – Você só fala, fala sem parar. (Caderno de Campo, 30/06/2010)

     2. No parque a professora do maternal se aproxima de Amanda (dois anos) com um rolo de papel higiênico, observo que a mesma, sem avisar, limpa o nariz da menina de costas. Amanda faz uma cara de brava para a professora e reclama da situação, que interrompe a brincadeira que a mesma estava envolvida. (Caderno de Campo, 10/05/2010)

     3. No CEI algumas professoras formam como que uma barreira cerceando as atividades das crianças. É como que quase tudo se lança ao proibido. Por exemplo, deixar as crianças se servirem sozinhas, escolher com quem sentar à mesa, ficar conversando com um amigo durante as refeições, subir nas bicicletas e carrinhos de bebê que ficam no pátio do CEI, transformar vassouras em cavalos, pegar água no tanque para misturar com areia. Vimos tudo ali exposto. Mas, ao mesmo tempo, nada à disposição das crianças, ao seu livre acesso. O que não falta são adultos combatendo a vida, parece até que não conheceram a alegria de ser criança. Ainda bem que não falta nas crianças energia para insistir e protestar. (Caderno de Registro da professora Patrícia)

     4. A professora do maternal se aproxima e diz: – Não quero ninguém pegando água para brincar, pois vai ficar muita lama. Nicole (três anos) fala: – Nós estamos fazendo bolo para o aniversário, não tá vendo? A professora diz: – Faz só com areia. Marcos (três anos) chama Gabriel (três anos), se afastam do grupo e Marcos fala algo em seu ouvido bem baixinho. Não é possível ouvir. Em seguida, de longe, vejo Marcos e Gabriel transportando água pela boca para fazer a mistura do bolo, dando continuidade à brincadeira. (Caderno de Campo, 20/07/2010)

     5. Tenho pensado como dialogo com as crianças, qual é a tonalidade de minhas palavras, quais gestos tenho priorizado na relação, qual é a afeição que compõe a organização daquilo que trago, a intensidade do meu olhar, a ternura do meu jeito de dizer ao outro que eu posso escutar. (Caderno de Registro da professora Patrícia, 05/05/2010)

     Não é simples se movimentar entre o ranço autoritário e a esperança democrática no exercício da docência com as crianças. Mas é muito importante que estejamos atentos e alertas, na busca incessante por uma prática que esteja coerente com nosso discurso de educador progressista. As crianças podem nos ajudar nesse processo se estivermos sensíveis à sua delicadeza, à sua irreverência, à sua ponderação sincera e ao seu desejo. 


     BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

     DELGADO, Ana Cristina Coll e FILHO, Altino José Martins (org.). Dossiê "Bebês e crianças bem pequenas em contextos coletivos de educação". Pro-posições, SP: Unicamp, v.24, n. 3 (72), p. 21-113, set/dez 2013.

     DELALANDE, Julie. As crianças na escola: pesquisas antropológicas. In: FILHO MARTINS, A. & PRADO, P. Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. FILHO 

     MARTINS, Altino & PRADO, Patrícia. Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. FALK, J. Educar os três primeiros anos. São Paulo: JM, 2011. 

     GRAHAM, Anne e FITZGERALD. O progresso da participação das crianças: explorando o potencial de uma atitude dialógica. Childhood, 2010, 17: 343.


     * Alexsandro Santos - doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). É consultor técnico legislativo, pedagogo e coordenador da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo. Atuou nas redes públicas municipais de São Bernardo do Campo e de São Paulo e foi secretário adjunto de Educação em Franco da Rocha (2013-2014). 


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