Questões e desafios da implantação do ensino fundamental de nove anos

Contextualização legal

Para falar do ensino fundamental de nove anos é importante situá-lo no contexto das políticas públicas de educação do Brasil, desencadeadas na última década, ou seja, no período compreendido entre os anos finais da década de noventa do século XX e os anos iniciais do século XXI.

Neste período, destacamos a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394/96), o Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei nº 10.172/01, a Resolução SEB nº 02 de 07/04/98, que instituiu os Parâmetros Curriculares Nacionais, além dos documentos de referência para a formação de professores para a educação básica e as diretrizes para o curso normal superior e, em 2005, por determinação da Lei nº 11.114, de 17/05/05, as matrículas de crianças de seis anos de idade passam a ser obrigatórias, ampliando o tempo de escolaridade obrigatória, ou seja, instituindo o ensino fundamental de nove anos.

A política de ampliação do tempo de escolaridade obrigatória foi se consolidando nas últimas quatro décadas, quando os quatro anos de escolaridade básica, em 1961 (LDB, Lei nº 4.024/61), passaram a oito anos pela Lei nº 5.692/71 e, em 2005, tornam-se nove anos, já prenunciados na Lei nº 9.394/96, que facultava a matrícula a partir de seis anos.

Políticas de educação

Esta decisão política, de aumentar a duração do ensino fundamental pode ter várias leituras e suscitar vários questionamentos dos quais destacaremos:
·   a matrícula aos seis anos é uma forma de combater a desigualdade de acesso à educação?
·   a escola de nove anos, ao ampliar o tempo de permanência do aluno na escola, seria uma forma de garantir um trabalho mais efetivo em torno de uma aprendizagem bem sucedida?
·   a alfabetização antecipada para os seis anos de idade é uma violência para o desenvolvimento natural da criança?

Para melhor entender a relação entre matrícula aos seis anos e políticas de combate a desigualdade de acesso à educação, faz-se necessário lembrar que “... todas as crianças – também as de zero a seis anos – são cidadãos de direitos, têm diferenças que precisam ser reconhecidas e pertencem a diversas classes sociais, vivendo na maioria das vezes uma situação de desigualdade que precisa ser superada... a educação da criança é um direito não só social, mas um direito humano...” (BAZÍLIO e KRAMER, 2003).

Portanto, o direito deve ser garantido, porque é nossa responsabilidade social tratar as crianças como cidadãos de pequena idade. De modo geral, as famílias socialmente menos favorecidas têm maior dificuldade para colocar seus filhos nas escolas de educação infantil, dada a defasagem entre o número de vagas e o número de crianças nessa idade escolar. Essas crianças, quando iniciam sua vida escolar no ensino fundamental, já apresentam diferenças em relação às demais que experenciaram a vivência escolar anteriormente ao seu ingresso no ensino fundamental. Essas diferenças de experiência comumente rotulam a criança pobre como não tendo cultura, o que explicaria o seu fracasso escolar.

A abordagem da “privação cultural” se instalou nas escolas há algumas décadas e, ainda hoje, ocupa boa parte das explicações dos professores e diretores quanto aos resultados de insucessos por parte das crianças nas escolas públicas.

É de suma importância que acompanhemos as indagações de Patto (1985), de como tornar os educadores menos preconceituosos, pois a mudança na postura deles é essencial para que consigam formular uma proposta curricular que valorize a cultura de origem da criança, partindo do conhecimento dela (KRAMER, 2003), no sentido contrário do que vem acontecendo nas escolas, onde se elabora um projeto pedagógico a partir de referências e idealização de um aluno, distante do aluno real.

Quanto aos aspectos da escola de nove anos e um tempo maior para o trabalho em torno de aprendizagens bem sucedidas, é importante não dissociar o trabalho da educação, que se efetiva no espaço escolar, da estrutura e da cultura da escola. As rotinas escolares, de modo geral, acompanham até hoje concepções de uma escola forjada no século XVIII, na época da Revolução Francesa. Os tempos escolares sobre os quais estão estruturadas a seriação, a divisão em classes, a distribuição dos conteúdos e as avaliações das ações escolares se constituem em “forma de escola” (FREITAS, 2003) e, embora essa estrutura já não atenda às expectativas de professores e alunos, as propostas de reorganização dos tempos e espaços escolares têm causado, junto à comunidade acadêmica, um debate contra as medidas de mudança, revelando processos de resistência e manutenção da estrutura escolar em nome do não-rebaixamento da qualidade do ensino (ALVES e DURAN, 2006).

Além disso, precisamos destacar que concepções diferentes de educação infantil e de ensino fundamental acabam fragmentando e classificando profissionais e práticas, os afastando da perspectiva cultural mais ampla, ou seja, de que as pessoas são sujeitos da história e da cultura, além de serem por elas produzidas.

Em outras palavras, a dissociação do ser-criança da educação infantil ou do ser-criança do ensino fundamental da sua construção histórica acaba provocando a dicotomia entre ser criança e ser aluno, o que nos induz ao caráter do “brincar” na educação infantil e ao “trabalhar” no ensino fundamental.

Essas idéias se expressam nas representações e no imaginário da população em geral e de muitos educadores, associando o brincar com coisa não-séria e o compromisso com tarefas escolares, horários rígidos e cadernos cheios de lições com trabalho sério.

Mas, a entrada das crianças de seis anos no ensino fundamental, torna essas crianças diferentes? O brincar e o aprender, a educação não-formal e a educação formal, a educação infantil e o ensino fundamental se apresentam como processos de aprendizagem, construção, conhecimentos, afetos, saberes, valores, cuidados, atenção, seriedade e riso.

Entendendo a escola como espaço que acolhe essa criança de seis anos, na dimensão de aprendizagem lúdica e na dimensão de aprendizagem sistemática de conteúdos, é possível reconhecer o papel do ensino fundamental de nove anos na transformação da estrutura e da cultura da escola. Finalmente, nos resta tratar dos aspectos relacionados à alfabetização das crianças de seis anos ou como no artigo de Emília Ferreiro, publicado em 1985: “Deve-se ou não se deve ensinar a ler e escrever na pré-escola? Um problema mal colocado”. A polêmica está colocada para professores e pesquisadores. Para os últimos e para a academia, o foco está na concepção de alfabetização, entendida como parte do processo de letramento, traduzido em práticas sócias de leitura e escrita para crianças, jovens e adultos enquanto sujeitos sociais e históricos.

Mas para as famílias que conseguem matricular seus filhos na educação infantil com cinco ou seis anos, e agora com essa idade no ensino fundamental, há a expectativa e o querer que sejam alfabetizados, assim como acontece com as crianças de classe média que se matriculam na escola particular. Lá sempre foram feitos trabalhos de alfabetização, com alunos de cinco ou seis anos, sem nenhum protesto. De modo geral, quando uma criança da classe média, aos cinco ou seis anos, não consegue reconhecer o nome do pai ou da mãe e não sabe escrever o próprio nome, a família já começa a se preocupar e essa escola e essas famílias não questionam o trabalho de alfabetização nessa idade.

Devemos entender que alfabetizar a criança não deve implicar em fazê-la ficar sentada por quatro horas com lápis, papel e borracha, fazendo exercícios.

É preciso que não deixemos de lado a noção de que o conhecimento se constrói, sendo o sujeito do conhecimento ativo no processo (Piaget). Sabemos, ainda, que ”crianças que têm acesso aos livros de literatura infantil e experimentam situações reais de leitura e escrita, em contextos de socialização infantil sadio, com músicas, teatro, filmes, jornais, poesia, histórias contadas, cartas etc. começam a se constituir como falantes da língua, como leitoras e como produtoras de escrita antes que os adultos tenham a intenção de alfabetizar” (BAZÍLIO e KRAMER, 2003).

Portanto, a decisão de desencadear o trabalho de alfabetização com as crianças de seis anos deve estar explicitada no projeto político-pedagógico, tendo como ponto de partida o processo de construção da leitura e da escrita, evitando as práticas pedagógicas nos dois extremos: a) conteúdos e práticas ligados aos aspectos mecânicos do ler e escrever; b) práticas que afastem a criança  do contato com o mundo das letras antes dos sete anos.

Considerações gerais

Devemos entender que a implantação da escola de nove anos é um avanço no campo das políticas públicas da educação no Brasil e uma conquista para os cidadãos. Contudo, se os profissionais de educação não se envolverem na proposta de mudar a organização da escola, resignificando o seu currículo, flexibilizando suas experiências e redimensionando tempos e espaços, muito pouco será realizado em favor da efetiva escolarização da população ou da melhoria na qualidade da educação que vem sendo oferecida. Em outras palavras, não se mudam crenças, práticas e rotinas a partir de documentos legais. A mudança envolve o querer e o fazer conjunto dos educadores.

Referências bibliográficas

ALVES, Maria Leila e GARCIA, Teise de Oliveira Guaranha. Gestão democrática da escola: os obstáculos que as políticas neoliberais impõem à sua implantação. XII ENDIPE, Curitiba, Paraná, 2004.

BAZÍLIO, Luiz Cavalieri e KRAMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos Humanos. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

BRANDÃO, Zaia. Fluxos Escolares e efeitos agregados pelas escolas. Em Aberto, Brasília, v. 17, n° 71, p. 41-48, jan.2000.

DURAN, Marília Claret Geraes. A escrita na escola: para além das metodologias da alfabetização. 14° Congresso de Leitura do Brasil - 25 anos: III Seminário sobre letramento e alfabetização. Campinas, Unicamp, Associação de Leitura do Brasil: Cdrom, p. 1-10, 22 a 25 de jul.2003.

FERREIRO, Emília. Ler e escrever num mundo em transformação, in: Passado e presente dos verbos ler e escrever.São Paulo: Cortez Editora.2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREITAS, Luiz Carlos. Ciclos. Seriação e Avaliação Confronto de lógicas. São Paulo: Moderna, 2003.

PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: história de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz,1990.

Publicações institucionais

BRASIL/MEC, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 9.394/96).

BRASIL/MEC, Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n° 10172/2001). 

BRASIL/MEC, Parecer CEB n° 4 de 20 de janeiro de 1998. Diretrizes curriculares nacionais para o ensino fundamental.

BRASIL/MEC, Parecer CEB n° 22, de 17 de dezembro de 1998. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil.

BRASIL/MEC/INEP, Parâmetros Curriculares Nacionais. 1997.

BRASIL/ MEC/INEP, Diretrizes Curriculares – Curso Normal Superior, 2000.

BRASIL/MEC, Secretaria da Educação Básica. Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Coordenação Geral do Ensino Fundamental. Ensino fundamental de nove anos: orientações gerais. Brasília, 2004.

* Texto elaborado para o curso “Questões e desafios da implantação do ensino fundamental de nove anos: reformulações e adaptações necessárias, a formação de professor e fundos de financiamento”, realizado pelo SINPEEM em 30 de maio de 2007, na Casa de Portugal

*Maria de Lourdes Camrgo Toledo

e-mail: malutoledo@uol.com.br

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