05/06/2006 – Analfabetismo e alfabetismo funcional no Brasil


por Vera Masagão Ribeiro *

A definição sobre o que é analfabetismo vem sofrendo revisões nas últimas décadas. Em 1958, a Unesco definia como alfabetizada uma pessoa capaz de ler ou escrever um enunciado simples, relacionado a sua vida diária. Vinte anos depois, a Unesco sugeriu a adoção do conceito de alfabetismo funcional. É considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida. Em todo o mundo, a modernização das sociedades, o desenvolvimento tecnológico, a ampliação da participação social e política colocam demandas cada vez maiores com relação às habilidades de leitura e escrita. A questão não é mais apenas saber se as pessoas conseguem ou não ler e escrever mas também o que elas são capazes de fazer com essas habilidades. Isso quer dizer que, além da preocupação com o analfabetismo, problema que ainda persiste nos países mais pobres e também no Brasil, emerge a preocupação com o alfabetismo, ou seja, com as capacidades e usos efetivos da leitura e escrita nas diferentes esferas da vida social.
A capacidade de utilizar a linguagem escrita para informar-se, expressar-se, documentar, planejar e aprender cada vez mais é um dos principais legados da educação básica. A toda a sociedade e, em especial, aos educadores e responsáveis pelas políticas educacionais, interessa saber em que medida os sistemas escolares vêm respondendo às exigências do mundo moderno em relação ao alfabetismo e, além da escolarização, que condições são necessárias para que todos adultos tenham oportunidades de continuar a se desenvolver pessoal e profissionalmente.
No meio educacional brasileiro, letramento é o termo que vem sendo usado para designar esse conceito de alfabetismo, que corresponde ao literacy, do inglês, ou ao littératie, do francês, ou ainda ao literacia, em Portugal.

Índices e critérios de medida

No século 20, as taxas de analfabetismo entre os brasileiros com 15 anos ou mais decresceram de 65% em 1920 para 13% em 2000. Esse decréscimo resulta da expansão paulatina dos sistemas de ensino público, ampliando o acesso à educação primária. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tal como se faz em outros países, sempre apurou os índices de analfabetismo com base na auto-avaliação da população recenseada sobre sua capacidade de ler e escrever. Pergunta-se se a pessoa sabe ler e escrever uma mensagem simples.  Seguindo recomendações da Unesco, na década de 90, o IBGE passou a divulgar também índices de analfabetismo funcional, tomando como base não a auto-avaliação dos respondentes mas o número de séries escolares concluídas. Pelo critério adotado, são analfabetas funcionais as pessoas com menos de quatro anos de escolaridade. Com isso, o índice de analfabetismo funcional no Brasil chega perto dos 27%, segundo o Censo 2000.
Mas ter sido aprovado na 4ª série garante o alfabetismo funcional?  A pergunta não tem resposta categórica, pois o conceito é relativo, dependente das demandas de leitura e escrita existentes nos contextos e das expectativas que a sociedade coloca quanto às competências mínimas que todos deveriam ter. É por isso que, enquanto nos países menos desenvolvidos se toma o critério de quatro séries escolares, na América do Norte e na Europa toma-se oito ou nove séries como patamar mínimo para se atingir o alfabetismo funcional. E, mesmo já tendo estendido a escolaridade de oito ou até 12 séries para praticamente toda a população, muitos países norte-americanos e europeus continuam preocupados com o nível de alfabetismo da população, tendo em vista, principalmente, as exigências de competitividade no mercado globalizado. O grau de escolaridade atingido já não satisfaz como critério de alfabetismo. Por um lado, é cada vez mais patente que os resultados de aprendizagem dos sistemas de ensino são muito desiguais e, além disso, os governos estão interessados em saber quanto a população adulta encontra oportunidades de desenvolver as habilidades adquiridas na escola, mantendo a capacidade de aprender.
Com esse tipo de preocupação, na década de 90, muitos países desenvolvidos começaram a realizar pesquisas amostrais para verificar de forma direta, por meio da aplicação de testes, os níveis de habilidades de leitura e escrita da população adulta. O principal programa internacional é articulado pelo OCDE, o International Adult Literacy Survey, do qual participam mais de 40 países. Nesses estudos, o foco não é o analfabetismo mas a insuficiência das habilidades de leitura e escrita da população alfabetizada. A dicotomia analfabeto x alfabetizado cede lugar para o interesse em determinar e comparar níveis de habilidade de leitura e escrita.
Na América Latina e no Brasil, em particular, a questão tem características específicas e mais complexas. Aqui, enfrentamos ao mesmo tempo os problemas novos e os antigos. O analfabetismo absoluto ainda atinge milhões de brasileiros e precisa ser solucionado com políticas voltadas à superação da pobreza e da exclusão. Ao mesmo tempo, é preciso melhorar o desempenho dos sistemas de ensino e elevar a qualificação da força de trabalho em todos os níveis, tendo em vista a participação nos setores de ponta da economia mundializada e o fortalecimento das instituições democráticas.

O Inaf – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional

A iniciativa de criar um Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional no Brasil, medindo diretamente as habilidades da população por meio de testes, foi tomada por duas organizações não-governamentais, a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro.  Criado em 2001, o objetivo desse indicador, o Inaf, é gerar informações que ajudem a dimensionar e compreender o fenômeno, fomentem o debate público sobre ele e orientem a formulação de políticas educacionais e propostas pedagógicas. Quais são as habilidades de leitura e escrita dos brasileiros? Quantos anos de escolaridade e que tipo de ação educacional garantem níveis satisfatórios de alfabetismo? Que outras condições favorecem o desenvolvimento de tais habilidades ao longo da vida?
Para responder a perguntas como essas, o Inaf aplica anualmente testes de habilidades em amostras de 2 mil pessoas, representativas da população entre 15 e 64 anos, além de questionários que apuram o background educacional dos respondentes, seus hábitos e práticas de leitura e escrita em diversos contextos de vivência. Em 2001, 2003 e 2005, focalizaram-se as habilidades de leitura e escrita; em 2002 e 2004, foi a vez das habilidades matemáticas, já que esse novo conceito de alfabetismo compreende também a capacidade de processar informações numéricas presentes no dia-a-dia, no comércio, no trabalho ou nas páginas dos jornais.
Diferentemente dos estudos internacionais, o INAF ainda opera com o conceito de analfabetismo, já que esse é um problema que persiste no Brasil. Além disso, entretanto, distingue três níveis de habilidades na população alfabetizada: o nível rudimentar, o básico e o pleno. Ainda que os três níveis tenham algum grau de funcionalidade, ou seja, correspondam a habilidades que as pessoas podem aplicar em determinados contextos, somente o nível pleno pode ser considerado como satisfatório, aquele que permite que a pessoa possa utilizar com autonomia a leitura e a matemática como meios de informação e aprendizagem. 

 

Leitura

Habilidades Matemáticas

Analfabetismo

Não domina as habilidades medidas.

Não domina as habilidades medidas.

Alfabetismo Nível Rudimentar

Localiza uma informação simples em enunciados de uma só frase, um anúncio ou chamada de capa de revista, por exemplo.

Lê e escreve números de uso freqüente: preços, horários, números de telefone. Mede um comprimento com fita métrica, consulta um calendário.

Alfabetismo Nível Básico

Localiza uma informação em textos curtos ou médios (uma carta ou notícia, por exemplo), mesmo que seja necessário realizar inferências simples.

Lê números maiores, compara preços, conta dinheiro e faz troco. Resolve problemas envolvendo uma operação.

Alfabetismo Nível Pleno

Localiza mais de um item de informação em textos mais longos, compara informação contida em diferentes textos, estabelece relações entre as informações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fato). Reconhece a informação textual mesmo que contradiga o senso comum.

Consegue resolver problemas que envolvem seqüências de operações, por exemplo cálculo de proporção ou percentual de desconto. Interpreta informação oferecida em gráficos, tabelas e mapas.

Desde a primeira medição realizada pelo Inaf, a distribuição desses níveis na população brasileira vem se mantendo mais ou menos estável. Tanto em leitura quanto nas habilidades matemáticas, verificou-se uma ligeira diminuição nos níveis mais baixos que, na leitura, correspondeu a uma melhora apenas no nível básico (ver quadro a seguir).  O analfabetismo matemático, ou seja, a incapacidade de ler números familiares, é menor que o analfabetismo em leitura (2% contra 7% nas últimas medições). Provavelmente, isso ocorre porque o sistema numérico é mais simples que o alfabético e porque a leitura de números é mais fortemente imposta pela vida diária. O que merece mais atenção, entretanto, são os percentuais próximos de 30% de pessoas que se encontram no nível rudimentar de domínio das habilidades, tanto em leitura quanto em matemática: só conseguem ler palavras e frases, só lêem números familiares sem fazer operações elementares. Surpreendente e sem dúvida também preocupante é o fato de que só cerca de um quarto da população atinge o nível pleno de domínio das habilidades medidas, tanto em leitura quanto em matemática.

Resultados do Inaf - Habilidades de leitura e habilidades matemáticas

 

Leitura e escrita

Matemática

 

2001

2003

2005

Diferença
2001 - 2005

2002

2004

Diferença
2002 – 2004

Analfabeto

9%

8%

7%

- 2 pp

3%

2%

- 1 pp

Alfabetizado Nível Rudimentar

31%

30%

30%

- 1 pp

32%

29%

- 3 pp

Alfabetizado Nível Básico

34%

37%

38%

+ 4 pp

44%

46%

+ 2 pp

Alfabetizado Nível Pleno

26%

25%

26%

-

21%

23%

+ 2 pp

Assim como os estudos internacionais, o Inaf comprova que a duração da escolaridade é o principal determinante das habilidades de leitura e escrita da população. No caso das habilidades de leitura, por exemplo, constata-se que, entre as pessoas que seriam consideradas alfabetas funcionais por não terem a 4ª série completa, um quarto está na condição de analfabetismo absoluto. Entre os que têm de 4ª série a 7a série, o nível rudimentar somado ao analfabetismo ainda é a situação  majoritária. Se algum patamar de escolaridade precisa ser usado como indicador de alfabetismo funcional, o correto seria tomar a 8ª série como mínimo, pois só entre pessoas com esse grau de ensino temos mais de 80% que atingem pelo menos o nível básico de habilidade em leitura. Com relação à matemática, os resultados são semelhantes. Oito anos de ensino fundamental correspondem também ao que a Constituição garante como direito de todos os cidadãos e deve ser a referência quando o país estabelece metas para superar o analfabetismo e a exclusão educacional.

O acesso à informação e à aprendizagem

Correlacionando os resultados dos testes com as declarações dos sujeitos sobre suas práticas de leitura e escrita, podemos ter a dimensão do que os níveis de alfabetismo significam em termos de participação em práticas culturais, acesso à informação e aos postos de trabalho mais qualificados. Por exemplo, o Inaf constatou que a maioria dos alfabetizados no nível rudimentar e básico não costuma ler livros (29% e 16%) ou só lêem um tipo de livro (42%), geralmente a Bíblia ou livros religiosos. Só entre pessoas alfabetizadas no nível pleno temos uma maioria de leitores que diversifica seus interesses: 33% costumam ler dois gêneros e 34% três ou mais gêneros, incluindo, além dos religiosos, as obras de ficção, biografia e história, ensaios e livros técnicos, entre outros.
Ao lado dos impressos, os meios informatizados se impõem cada vez mais como meio de comunicação e informação. O uso de computadores ainda é restrito a um quarto da população brasileira, do qual 82% acessam a internet e 70% enviam e recebem e-mail. Como era de se esperar, o uso do computador é inexpressivo entre os analfabetos e alfabetizados no nível rudimentar. Entretanto, entre as pessoas mais escolarizadas, cujo acesso é maior, seu uso mostrou ter uma influência destacada no desenvolvimento das habilidades de leitura. Enquanto 44% dos alfabetizados no nível pleno afirmam usar computador todos ou quase todos os dias, entre os de nível básico esse percentual é de 26%.
A realização de cursos, para além do ensino formal, também é um fator de promoção das habilidades de leitura e escrita. A educação continuada é um setor em que os países desenvolvidos têm feito grandes investimentos, conscientes de que, na sociedade contemporânea, é essencial renovar constantemente os conhecimentos. Os estudos internacionais mostram que, em países como Suíça, Estados Unidos, Noruega e Canadá, aproximadamente 50% da população adulta participou de algum programa educativo nos doze meses anteriores aos levantamentos. Segundo o Inaf, a freqüência a cursos vem aumentando lentamente no Brasil, mas ainda é uma prática muito restrita. Em 2005, havia 44% de pessoas entre 15 a 64 anos que nunca tinham feito um curso além do ensino formal e só 16% haviam feito algum nos 12 meses anteriores à entrevista.

Os compromissos necessários para um Brasil alfabetizado

Os dados sobre o alfabetismo funcional confirmam que a educação básica é o pilar fundamental para promover a leitura, o acesso à informação, a cultura e a aprendizagem ao longo de toda a vida. Assim, para que tenhamos um Brasil com níveis satisfatórios de participação social e competitividade no mundo globalizado, um primeiro compromisso a ser reafirmado é com a extensão do ensino fundamental de pelo menos oito anos a todos os brasileiros, independentemente da faixa etária, com oferta flexível e diversificada aos jovens e adultos que não puderam realizá-lo na idade adequada.
É preciso também reconhecer que os resultados da escolarização em termos de aprendizagem ainda são muito insuficientes e que um eixo norteador para a melhoria pedagógica na educação básica deve ser o aprimoramento do trabalho sobre a leitura e a escrita. É preciso superar a visão de que esse é um problema apenas dos professores alfabetizadores e dos professores de Português. Grande parte das aprendizagens escolares depende da capacidade de processar informações escritas, verbais e numéricas, relacionando-as com imagens, gráficos etc. Todos os educadores precisam atuar de forma coordenada na promoção dessas habilidades, contando com referências claras quanto a estratégias e estágios de progressão desejáveis ao longo do processo, para que os avanços possam ser monitorados. Com apoio dos gestores, todos os professores devem agir sistemática e intensivamente no sentido de desenvolver nos alunos hábitos e procedimentos de leitura para estudo, lazer e informação, assim como proporcionar o acesso e a manipulação das fontes: bibliotecas com bons acervos de livros, revistas e jornais, computador e internet.
Finalmente, é preciso reconhecer que a promoção do alfabetismo não é tarefa só da escola. Os países que já conseguiram garantir o acesso universal à educação básica estão conscientes de que é necessário também que os jovens e adultos encontrem, depois da escolarização, oportunidades e estímulos para continuar aprendendo e desenvolvendo as suas habilidades. Os programas de dinamização de bibliotecas e inclusão digital são fundamentais e devem ser levados a sério pelas políticas públicas. Para a população empregada, o próprio local de trabalho pode ser potencializado como espaço de aprendizagem e, nesse caso, os empresários têm uma participação importante nos compromissos a ser assumidos. As empresas podem oferecer e incentivar o uso de acervos de jornais, revistas e livros, assim como de terminais de acesso à internet para fins de pesquisa, além de ampliar as oportunidades de participação em programas educativos relacionados ao desenvolvimento pessoal  e profissional dos trabalhadores, dando especial atenção aos que têm menor qualificação e necessitam de mais apoio para superar a exclusão cultural.

* Doutora em Educação pela PUC-SP, coordenadora de programas da ONG Ação Educativa

 

 

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